As coisas e as pessoas se misturam, bem proferiu Marcel Mauss. Comer na cozinha é escandalosamente diferente de fazê-lo na sala. Minha mãe e a cozinha se misturam. Os pratos lavados por suas mãos, o forro que ela esticou, a bacia recheada de frutas compradas por ela na feirinha da esquina. Habitar aquele espaço é acompanhá-la. Não há televisão, frango a gente come é besuntando os dedos, jogando algum pedaço para os cachorros que assistem ávidos ao banquete. Sei que ali ela passa horas sozinha, debulhando seus pensamentos e cantando suas melodias. Às vezes deve arriscar um passo de dança.
N’algumas manhãs acordo de supetão. É quando não sei em qual casa estou. Assusto-me com a configuração circundante de móveis, paredes e janela. Num estralo, a incoerência desaparece. Ah, claro. Na pequena cozinha da capital, minha mãe não faz o seu arroz branquíssimo nem lava o alface com esmero. Lá, sou eu quem fica só. Mas cada gesto parece ecoar um pouco dela. O jeito como faço o café, esfrego os copos e canto enquanto os enxáguo. O modo de experimentar o feijão e o molho, tocando levemente a colher úmida na palma da mão para depois lamber rapidamente, antes que a pele queime. Entretanto, isso é raridade. Gosto de cozinhar, mas as panelas pequenas me incomodam. Nelas, há energia para uma única pessoa. Comendo sozinha, penso desperdiçar momento de comunhão.
Como se vê, o nome deste blog não encontra inspiração no paradigma “Caldeirão do Hulk”, fundamentado na ideia de um receptáculo dos ingredientes mais heterogêneos e grotescamente expostos. As panelas fundas me são caras porque guardam alimento para muitas bocas e almas. São pesadas, e as colheres precisam ser manipuladas com precisão e força no movimento de misturar o seu conteúdo. Transportar uma panela funda e cheia é também labor árduo, executado principalmente por braços femininos enrijecidos pela vida de pouco cor-de-rosa. Resultado de trabalho e cuidado, o alimento preparado se divide numa multiplicidade de pratos. Aí me vem aquela parábola bonita.
Volto a minha casa-matriz, às memórias de família, ao aconchego da vasta mesa de minha avó, lugares de onde talvez eu nunca tenha saído. Olho ao mesmo tempo para as minhas panelas pequenas de amolecer miojo. Em um brado, topo o desfio sem tristezas. Não, essa lacuna eu não aceito. Não, não tenho vocação para fast-food.
![]() |
Pieter Bruegel - Banquete Nupcial (1568) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário