sexta-feira, 20 de abril de 2012

Luluza


Luzia sempre detestou o frio do mármore e dos olhares que se evitam. Não suporta bocejos disfarçados. Desconfia de roupas muito bem passadas. E de silêncios constrangidos que se instauram ao apagar das luzes. Comida para ela tem que ficar entre os dentes. Sonho tem que ser contado com tom dramático e desfecho misterioso. Carece ser interpretado, num gesto assim de querer descobrir a lógica dos encontros e dos destinos. Luzia sempre foi afeita às janelas de ônibus, à chuva em plena tarde e aos pombos que quase são atropelados.

Acima de tudo, admira dedos. Pela sua predisposição a se tornarem gelados quando o coração inflama. Por desvelarem a insegurança de um rosto severo quando fazem tremer a folha de papel. Para ela, entretanto, a mais nobre vocação dos dedos é a sua tendência ao entrelaçamento. Com outros, de outras mãos, formando um emaranhado de pele e pequenos ossos. No entendimento pós-científico de Luzia, dos dedos também saem fios luminosos, elásticos. Fios que se trançam, formando uma malha translúcida que, numa dança, se estende generosamente sobre as superfícies das almas. Por isso, ela cuida de manter suas mãos sempre dóceis. Adora acariciar cabelos e faces delicadamente, provocando sutis notas de suspiro.

Os filetes que escapam de Luzia, por vezes, se tornam palavra. É quando ela decide falar ou escrever sobre sentimento. Aí é redemoinho. Passa atroz, deixando rastro: dentro dela, porque mexe com uma bagunça de coisas, e fora, porque reverbera pelo universo. Em síntese, Luzia teoriza que as palavras, constructos energéticos, podem entrelaçar pessoas. Bem como o toque concreto dos dedos. Palavra é ponte. Isso ela aprendeu com o filósofo russo Mikhail Bakhtin e faz questão de aplicar cuidadosamente. Diálogos são transações de ideas, compartilhamento. Ela ama engrenar uma boa conversa exatamente por isso: nunca volta a mesma. E sabe que, de alguma forma e em alguma medida, a outra pessoa também não.

Luzia fica preocupada quando percebe que todo mundo anda usando fones de ouvido. Fica decepcionada quando se dá conta de que, nas boates, o que menos importa é a palavra. Nesse sentido, acha que o encontro material dos corpos muitas vezes não é o suficiente para que se formem laços viçosos e resistentes ao egoísmo. Luzia é uma grande crítica ao pensamento cartesiano. Corpo e alma não se separam, poxa! Revoltada com o racionalismo ocidental, e inspirada na sabedoria dos “primitivos” que não transformaram as suas relações em meros objetos consumíveis, ela reformula a lei universal do individualismo moderno. Penso e sinto em companhia, logo existo.

Um comentário:

  1. O encontro com nós mesmos só se dá no encontro com o outro. Só se tem o reconhecimento de si quando nos reconhecemos, de alguma forma, no outro.

    A falta de valorização desse encontro cada vez mais nos desumaniza.

    Bom pra pensar...

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